Nos últimos tempos, estão sendo publicadas muitas obras que trazem à tona debates sobre alguns assuntos muitos relevantes para o mundo em que vivemos; um desses assuntos é o relacionamento abusivo. Seja de forma intencional ou não, não são poucos os livros que trazem isso em sua narrativa. Quem vê de fora, pode pensar que a série Corte de Espinhos e Rosas, em especial o primeiro livro, é só mais um livro de romance que mistura um pouco de fantasia. Mas a verdade é que esse livro é muito mais que a história de uma garota que conhece e se apaixona por um cara. Muitos que leram o primeiro livro, não percebeu a forma sutil que a Sarah J. Maas abordou o relacionamento abusivo. Está lá, nas entrelinhas da história. Você só precisa observar bem para perceber. Mas, mesmo que seja difícil de identificar logo de cara, o leitor sente um pequeno desconforto e sente que alguma coisa está errada. Este desconforto é explicado quando iniciamos a leitura do segundo livro e percebemos que tudo o que lemos no primeiro livro, e tudo o que achamos bonito, estava errado.
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Para quem nunca ouviu falar nesses livros ou não sabe bem a narrativa deles, vou explicar um pouco. Corte de Espinhos e Rosas conta a história de Feyre, uma garota forte e determinada, que precisa carrega a responsabilidade pela sua sobrevivência e também pela sobrevivência de sua família. O mundo em que ela vive é dividido entre humanos e feéricos. Sendo que cada raça vive em seu próprio território. Feyre sempre sai de casa para caçar, já que esta é a única forma de alimentar sua família. Numa dessas caçadas ela se depara com um lobo feérico, sem pensar, ela o mata. Mas isso terá consequências. Quando os humanos foram livrados do poder dos feéricos, foi criado um tratado, onde nenhum humano poderia matá-los. Como pagamento pelo crime, Feyre é levada para o outro lado da muralha, para viver com o Grão-Senhor da Corte Primaveril, Tamlin. É, a partir desse momento que os dois acabam se envolvendo num relacionamento. E, é desse relacionamento que vamos falar nesse post.
Atenção: o texto abaixo contém alguns spoilers da série.
Como eu disse no começo, quem lê a sinopse e vê de fora, pode pensar que já viu essa história antes, ou que o livro não passa de um romance clichê, água com açúcar. Mas, o que essa obra tem de diferente é todas as surpresas e reviravoltas que acontecem a partir do segundo livro, que nos mostra tudo o que estava acontecendo de errado com o relacionamento entre Feyre e Tamlin no primeiro livro. É quando lemos Corte de Névoa e Fúria que vemos que estávamos torcendo por algo errado e muito perigoso.
No primeiro volume, conhecemos Tamlin, um Grão-Feérico muito poderoso. Quando Feyre passa a viver com ele na Corte Primaveril, os dois acabam se aproximando e, com isso, se apaixonando. Até aí nada demais. Mas a questão é o que acontece a partir do momento em que eles ficam juntos. No começo achamos o Tamlin um homem encantador, amável, forte; que se preocupa com povo e com a Feyre. Tudo isso que enxergamos no personagem no início, nos faz cair de amores por ele. Achamos bonito a forma como Tamlin trata a Feyre: dando roupas a ele, dinheiro para a família, uma casa confortável e uma vida de luxo. Suspiramos quando vemos ele demonstrando carinhos e atenção a ela. Momentos em que imaginamos como seria conhecer um Tamlin na vida real. Mas, é nesses momentos que mora o problema. Tamlin usa a desculpa de estar preocupada com ela e com a vida dela para manter Feyre presa. Ele não aceita o fato dela saber se proteger muito bem, e ter feito isso por anos antes de conhecê-lo. Vemos sempre ele demonstrar sua insatisfação com rosnados e a aparição de sua forma mais selvagem. E por que não enxergamos isso? Porque a autora consegue mascarar isso com a boa escrita. Que, no lugar de ficarmos indignados com o personagem, nós o amamos, sentimos empatia por ele e tentamos a todo o custo justificar suas atitudes.
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É no segundo livro que nossa visão sobre o personagem muda. Finalmente percebemos o quanto Tamlin era controlador e possessivo com relação a Feyre. Vemos essas atitudes dele se intensificando no segundo livro, agora de forma mais aberta, sem esconder nada. Ele continua mantendo Feyre presa, sem dar a ela o direito de escolha. Praticamente forçando a personagem a assumir os preparativos de um casamento que ela já não tem tanta certeza que deseja. Não perceber, ou ignorar os sinais de traumas e depressão que Feyre apresenta logo após a tragédia do primeiro livro. Tudo o que Feyre viu e enfrentou no final do primeiro livro, a deixam traumatizada, tendo constantes pesadelos, sem vontade de fazer as coisas que ela gostava antes de tudo acontecer. Sua aparência já não é mais a mesma, seu espirito já não é mais o mesmo. Ela, a cada dia definha mais e mais. E o Tamlin não percebe nada disso, ou talvez finja em não perceber. Tudo o que ele faz, ele se desculpa dizendo que está penando no que é melhor para a Feyre, pensando em sua segurança. Sempre prometendo não fazer mais essas coisa, para em seguida fazer pior.
Depois de não suportar mais ver a personagem passando por isso, podemos ver – finalmente – a personagem se livrando desse relacionamento e começando a se curar. Encontrando novos amigos, se tornando uma pessoa mais forte e poderosa. Tudo isso graças a pessoas que ela conhece a partir de certo momento no livro e por conta de um novo amor. E, ao contrário do que vemos na última temporada de Game of Thrones, a Feyre não ficou mais forte devido ao abuso que ela sofreu. Desde o primeiro livro vemos o quando ela era uma personagem forte, enfrentando perigos para salvar a família. O que aconteceu foi que ela se esqueceu de quem ela era, da pessoa forte que ela era; o que ela precisava era encontrar novamente aquela antiga Feyre.
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Quando um novo personagem é inserido na trama, passamos a ver como um verdadeiro relacionamento deve ser. O amor de verdade liberta, ao invés de prender. Vemos que esse novo parceiro da Feyre confia nas decisões tomadas por ela. Mesmo que ele se preocupe, ele nunca a trata com um passarinho frágil que precisa ficar presa numa gaiola. Ele quer caminhar ao lado dela e aprender juntos. Esse mocinho está longe de ser perfeito, mas está disposto a aprender com seus erros. Ele não aceita que regras e tradições permitam que sua parceira esteja abaixo dele, que ela seja, de alguma forma, inferior a ele.
Corte de Espinhos e Rosa é uma fantasia incrível, com uma história interessante, com personagens muito bem construídos, que possui uma protagonista feminina maravilhosa; corajosa, forte. O melhor do livro é a forma que ele apresenta o relacionamento abusivo, de forma sensível e bastante real. É um livro que te faz criar uma paixão por um personagem, para depois mostrar que estávamos enganadas. Que tudo o que idealizamos naquele personagem não era bom, que os sinais sempre estiveram lá, mas lutamos em não perceber.
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